Depois de 30 anos como industrial no Brasil e a pensar em regressar definitivamente a Portugal o meu pai resolveu mudar de atividade e comprar uma Quinta. Estávamos na década de 60 e eu devia ter 5 ou 6 anos. Lembro-me das primeiras visitas. Apesar de estar a 500m de uma estrada nacional, o caminho mais curto para aqui chegar obrigava o carro a atravessar um rio, era literalmente atravessar, descer e voltar a subir. Claro que quando chovia tínhamos que “ir à volta”. Por vezes para encurtar o tempo travessias mal calculadas tinham como consequência atolamentos que obrigavam a vir um trator retirar o carro do leito do rio.
No entanto havia rio, havia água que corria transparente, onde se lavava a roupa e onde era possível ver peixes…
Como qualquer história de Quinta que se preze, também nesta chovia dentro de casa e os ratos abundavam. Naqueles anos as quintas eram um local onde os proprietários iam de férias. E esta não era exceção. Havia umas enormes adegas, um monte de casario e uma terra “mal-amanhada”.
Com o meu pai as coisas foram mudando, a casa teve obras, as adegas transformaram-se em armazéns e as vinhas velhas e as terras sem uso, em pomares de pêra Rocha.
A Quinta, 1976.
A pera passou a ser a rainha desta Quinta.
Estávamos nos anos 70, uma época em que alastrava a ideia, que se converteu em projeto global, de que a agricultura devia ser “industrializada”.
Nessa altura construiu-se a ponte para passarem os carros o que foi uma excelente ideia. Teria sido bom que não se tivessem esquecido da importância da água que passava por baixo.
A Quinta do Arneiro transformou-se numa Quinta modelo. Não havia muitas com 30 ha de pomares de pera Rocha primorosamente bem cuidados. Os inícios de tudo são sempre tempos de experiências. As monoculturas obrigam a uma muito maior atenção e foco na produtividade, nada pode falhar porque não há escapatória. Os anos 80 e 90 foram anos de excelentes proveitos.
E eis que estamos na viragem de um século, muitas vezes não percebemos, mas andamos todos como a pescadinha de rabo na boca.
Tenho a certeza hoje, que se o meu pai soubesse o que ia acontecer ao rio, não que a Quinta tivesse tido alguma culpa direta na poluição do mesmo, o que ia acontecer à saúde da natureza, as consequências desta agricultura intensiva, o desperdício que iria gerar, teria sido ele a iniciar este projeto. Acredito que esteja contente ao ver o que se está por aqui a passar.
Pêra rocha.
Início de um novo ciclo.
Entretanto a Quinta tinha deixado de ser também para mim, desde 1987, um local onde passava férias para passar a ser a casa de família. Todos os meus filhos nasceram e cresceram aqui.
Em 2007 depois de uma daquelas voltas que a vida dá, deixei uma livraria que tinha há 14 anos para me vir dedicar a 100% à agricultura. Os dois primeiros anos foram como estar no paraíso, não estou a exagerar. Tive o privilégio de poder passar dias a trabalhar no campo e posso garantir, mas garantir mesmo, que trabalhar no campo trouxe-me paz, alegria e energias indescritíveis. Lembro-me com saudade desses momentos e eu não sou de ter saudades.
Mas quem me conhece sabe que me é impossível deixar de sonhar, de projetar e idealizar. Felizmente tem acontecido conseguir concretizar os meus sonhos. Já há muito tempo que pensava que se fosse eu a gerir a quinta “as coisas” teriam que mudar.
Primeiro: era essencial ir convertendo a Quinta aos poucos e poucos, transformando-a numa Quinta em modo de produção biológico.
O respeito pela natureza quando dependemos em exclusivo da sua generosidade é um dado óbvio. É impossível termos alguém como parceiro por muito tempo, se não o tratarmos com respeito. E que parceria pode ser mais intensa do que a do agricultor com a natureza?
Segundo: era ponto assente que tínhamos que fazer chegar os nossos produtos aos consumidores sem intermediários. Nesta atividade o agricultor é sempre o elo mais fraco. A distância entre quem consome e quem produz é cada vez maior. De onde vem esta alface, como foi produzida, como é que chegou a mim? São perguntas que ninguém faz.
O nosso objetivo: que os nossos clientes passem a saber de onde vem a alface e se possível quanto tempo demorou a crescer, qual a época da maçã, das couves ou do tomate.
Há quem diga que a vida começa no fim da nossa zona de conforto. Se for assim eu tenho a certeza de que a minha começou no dia em que iniciei este projeto.
É muito motivador constatarmos hoje, alguns anos passados, que muitos dos nossos clientes da primeira hora ainda estão connosco e que todos os dias chegam mais. E que ajuda nos têm dado!! É também muito reconfortante percebermos que estamos a construir um projeto com bons alicerces. Preferimos escolher um caminho menos fácil, mas que garantidamente será mais duradouro.
Não podemos nem queremos deixar acabar esta história sem agradecer a todos os que fazem parte dela, os nossos clientes, os nossos colaboradores, os nossos fornecedores. É por ter tantos personagens que esta é uma história tão rica de que não se vislumbra final.
Voltemos ao rio de que falei no início. Basta passarmos pela ponte que percebermos tudo. O que a nossa evolução esqueceu, do que nunca mais nos lembrámos foi de parar para pensar. As consequências do desrespeito pela natureza são absurdamente visíveis.
E esta será uma história ainda mais feliz quando podermos dar a notícia de que aquele rio é outra vez um rio de água cristalina. E se esse for o sonho de todos nada nos vai impedir de que tal aconteça.